sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Mário Lúcio

Andarilho crioulo

O menino órfão do Tarrafal entregue ao cuidado de militares, começou cedo no caminho das letras e descobriu espantado o fascínio da música e dos sons multicolores do Mundo. Agora, ao mesmo tempo que dá à estampa livro novo, apresenta-nos o fantástico Kreol – uma viagem musical pelas estradas da crioulização…
É um viajante do Mundo, caminhante à procura de reminiscências crioulas. Viagem que começou cedo, muito cedo, numa altura em que a inexistência de livros se fazia substituir por rótulos de embalagens de banha, de manteiga ou de azeite que Mário, homenzinho precoce de 5 anos, do Tarrafal de Santiago, reproduzia no chão térreo utilizando como caneta o pequeno dedo que aí, nesse acto criativo, adquiria a dimensão de verdadeiro instrumento da escrita – pronúncio de aventuras futuras pelo universo mágico das letras? Adiante…
Viajante – dizíamos - por mero acaso, por circunstâncias imponderáveis, pelo traço indelével, definitivo do “destino”? E viajante primeiro, como já se disse, pelo mundo de letras e palavras, gizando até novas interpretações e significados. “Lda.’ [de Limitada] que surgia no rótulo da banha junto a um braço forte era para nós ‘braço forte lida’, de lidar, pelejar. Havia muita viagem na minha cabeça”, diz com o olhar de quem ainda se interroga do porquê dessa peregrinação incessante pelos caminhos da vida que, num primeiro tempo, o levaram até Cuba e a um curso de Direito.
Regressado ao chão pátrio, advogado de escritório e placa à porta, empreende a viagem pelo mundo da música que, já antes – muito antes, nos tempos em que viveu num quartel sob tutela do Exército, era órfão de 12 anos -, lhe havia batido de mansinho, despertando nele a chama que, mais tarde, o levou ao virtuoso Simentera no início da década de 90.
A prosa, a poesia, o teatro arrumam-se também na vida agitada do músico que, ainda muito jovem, ensaia também passagem pelo jornalismo, corriam os tempos agitados da independência e a explosão inevitável de criatividade que todas as revoluções comportam e transportam. As viagens, sempre as viagens: “viver no planeta mais pequeno do sistema solar e confinar-me a uma esquina, seria muito triste”. E a tristeza é coisa de que não padece o corpo franzino e rijo que se nos apresenta de branco, numa imagem inicial de serenidade e paz.
“Kreol” – que a cidade da Praia ouviu deslumbrada, faz hoje uma semana -, é o último trabalho do músico que tem como companheiros de viagem Milton Nascimento, Pablo Milanés, Harry Belafonte, Pedro Joia, Teresa Salgueiro e Cesária, entre outros, numa viagem incessante pela rota da escravatura, registando um a um os momentos, confirmando a dimensão universal do Ser crioulo.
“Somos poucos, somos pequeninos e temos, necessariamente, de aprender com os outros e absorver. Foi isso que me levou, hoje em dia, a falar abertamente com os africanos para que aceitem que não somos só africanos. E falar abertamente com os europeus, para que aceitem que nós também somos de origem europeia. É este o fenómeno de crioulização”, atira como que a explicar o pano de fundo de Kreol – uma fantástica viagem pelas nossas diferenças colectivas que, por si só e na mistura de elas todas, tingem de cor este nosso Mundo.
“O Novíssimo Testamento”, seu último livro, lançado em simultâneo com Kreol – e primeira obra literária a ser editada em Portugal -, é uma revisitação pelos mistérios da existência de Cristo e conta a história da sua ressurreição num corpo de mulher. Um livro onde a inexistência de pontos finais decorre, segundo o autor, por a expressão oral não contemplar essa pontuação em particular, e este “O Novíssimo Testamento” pretender ser conversa entre o escritor e o universo heterogéneo desta mestiçagem que todos somos.
“Os portugueses não descobriram estas ilhas, descobriram-se nestas ilhas”. E estas palavras de Mário Lúcio adquirem força maior porque são prenhes desse espírito de aventura que move a Humanidade desde tempos imemoriais e que, pese embora os crimes e as malfeitorias de todas as épocas, acabam sempre por desembocar na partilha das diferenças e no respeito pelo Outro.
É a aventura, a necessidade endémica de descoberta e o eterno fascínio do espanto perante o Mundo que faz mover o crioulo do Tarrafal, homem precoce, menino escritor de rótulos e amante da vida e das pessoas, de seu nome completo Mário Lúcio Sousa?

“Viver no planeta mais pequeno do sistema solar e confinar-me a uma esquina, seria muito triste”  - Mário Lúcio, dixit -
Foto: JOSÉ RAMOS

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