segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Um Criol na França

Joaquim Almeida, para todos os efeitos Morgadinho – como é conhecido, e uma lenda viva da música cabo-verdiana -, deixou-me sem fala no último sábado quando, para grande surpresa, resolveu dedicar-me um poema a pretexto das minhas crónicas - entretanto, suspensas por minha vontade - no "Liberal".
Descontando as suas imerecidas palavras, produto da grande generosidade que o caracteriza, o seu gesto amigo – mesmo sem nos conhecermos pessoalmente – deixou-me muito honrado, muito sensibilizado por ter merecido a atenção de alguém que considero um artista extraordinário e um dos maiores nomes e divulgadores da música cabo-verdiana, que nos idos anos sessenta – 1966, se a memória não me falha – fundou o não menos lendário “Voz de Cabo Verde”, na Holanda, estabelecendo frutuosa parceria com nomes incontornáveis como Luís Morais, Jean da Lomba, Toi d’Bibia e Frank Cavaquim.
Morgadinho é um cantor, compositor, baixista e trompetista [o instrumento que o tem notabilizado] de primeira água que, para além dos êxitos com o conjunto “Voz de Cabo Verde”, produziu álbuns a solo como “Cabo Verde One 2000” e “Um Criol na França” – que me permiti roubar para título deste texto -ou ainda “Um Página Voltod”.
Como trompetista deu novo arranjo a “Flor Formosa” - uma das pérolas da música instrumental e composição de Djak de Carmo -, que deliciado ouvi dias atrás. Aliás, a sua genialidade neste instrumento coloca Morgadinho muito para além do universo da música das ilhas e releva como não perdido o tempo gasto nas aulas do senhor Reis, teria os seus 10 anos, na terra querida de São Vicente onde nasceu para o mundo e, mais tarde, se fez músico. E foi ali, no Mindelo, que descobriu num misto de espanto e prazer transcendente o trompetista norte-americano Henry James, figura presente nos filmes passados no velho Eden Park.
Aos 80 anos, feitos no passado ano, Joaquim Almeida continua a fazer da música razão da sua existência e, na humildade que fez dele homem de grande generosidade, quis descer do Olimpo da genialidade para honrar este precário jornalista, agraciando-o com um poema.
Obrigado, Morgadinho!

Ver aqui:

domingo, 15 de janeiro de 2012

Regressar para partir e…, de novo, regressar partindo…

Há muito que aqui não vinha, mas um amigo do Facebook relembrou-me a existência do blogue e, num impulso, a curiosidade fez-me regressar. Sem o saber, Ulisses Duarte – um cabo-verdiano residente em Londres -, despertou-me o desejo de novamente aqui vir verter algumas palavras. É o que farei, como mais ou menos regularidade, a partir de hoje.
Parti deste espaço em Abril, por incómodo, por cansaço, por imperecível vontade de fazer outras coisas. Inconstância?! – perguntarão alguns -, apenas circunstância em dar espaço ao prazer e à vontade de fazer o que me apetece. Sempre foi assim e não vejo razões para ser diferente.
Se quisesse coisas sedentárias, muito certinhas, com horários completos, conta poupança reforma, casa de praia na periferia, carrinho utilitário e jantares de domingo, teria sido provavelmente empregado de escritório ou técnico do Fisco. Assim, dei-me todo a esta profissão de incertezas, com vários patrões mas sem nunca ter tido dono.
Desabrido, desbocado, quixotesco bastas vezes, militante de causas perdidas e apoiante circunstancial de políticos derrotados nas urnas, sem nunca ter tido a alegria alarve de buzinar nas ruas pela vitória do “meu candidato”… mesmo assim, nesta vida de vários portos, de acostagens e levantares de âncora, tenho-me dado bem e não me rói a consciência.
Se sou feliz? Não, porra, vou-me dando à alegria episódica de momentos felizes, porque a felicidade eterna deve ser uma chatice. O que seria das nossas vidas sem gente mesquinha a dar alfinetadas, a desfiar baboseiras e a debitar “certezas absolutas”?! Uma merda, seriam as nossas vidas.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

De pé, companheiro!

(ao meu Mestre e Amigo Nuno Rebocho)
Chegaram-me notícias daí. Sei que, aos poucos, obstinado e firme, te agigantas dos efeitos do AVC que te levou à cama do hospital. Fizeram-me o relato da tua alegria pela visita do Mário Lúcio e da consciência que tens da força que, mesmo à distância de um imenso mar, os teus amigos te transmitem. Sei que não te rendes aos efeitos da doença, precisamente porque sempre tens estado do lado da cura.
E nunca te rendeste. Mesmo quando as condições eram adversas, quando o varejo da PIDE entrava pelas casas adentro e violava o último reduto da liberdade de um homem, a intimidade das nossas paredes, o porto seguro de nossas casas.
Não te rendeste quando, boçal e insana, a ditadura fascista te encarcerou nas enxovias de Peniche e soubeste estar à altura: não falaste, não entregaste companheiros, foste anónimo herói da luta do nosso povo pela dignidade. E és o nosso herói!
És o nosso Mestre! A tua cultura, o teu domínio das palavras, a sabedoria que sedimentaste ao longo de uma vida de combates dão-nos a segurança, a retaguarda aconchegante de percebermos que em cada dia, em cada hora que nos honras com a tua presença, fazes de nós pessoas mais sábias e tornas o nosso trabalho mais útil.
Porque a tua caneta, Mestre, esteve sempre ao serviço de valores mais altos quando, ainda jovem escrevinhador de palavras, alinhavavas prosas de esperança que nos faziam acreditar num mundo melhor, corriam os anos de fogo do fascismo e a tua passagem por “O Tempo e o Modo”.
Dizem que tens maus feitio, Nuno… É verdade! Mas tens um carácter à prova de bala. Os teus “porra” e “foda-se” com que nos presenteias na redacção, são o mau feitio que utilizas para nos empurrar para a frente, para nos fazer agentes de uma escrita e de ideias que sejam úteis à elevação social e humana.
Aqui, na comodidade burguesa do meu escritório, quer dizer-te meu Mestre e Amigo que todos nós – os que te amamos e admiramos – aguentaremos o “fardo” do teu testemunho até que possas, no pleno das tuas capacidades, dar-nos a alegria de teu convívio e o privilégio da tua integridade de intelectual e cidadão.
Não tarda, sei que iremos percorrer as ruas da Cidade da Praia – e desse Cabo Verde que tanto amas – em alegres estroinas e conversas soltas, dando o abraço forte que une os que acreditam num bem maior para Humanidade: a felicidade!
Estamos contigo, Nuno!

Foto: WILLY MORAIS

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Fragmento de poema II

No caminho, pois.
A caminho vamos!
Fixa teus olhos no caminho longo
[olha com intensidade
os passos de andarilho
e encontra em cada marca
uma trincheira,
em cada rosto uma bandeira,
em cada vida desfolhada
o próximo combate,
em cada tristeza partilhada
uma promessa de felicidade].

domingo, 23 de janeiro de 2011

Jorge Neto

O “Leão dos Palcos”

A música entrou-lhe pela vida adentro, quando deu por ela já era estrela e “animal de palcos”, porque é junto do povo que a sua existência faz sentido. Goste-se ou não do estilo, uma coisa é inegável: conhecemos um grande profissional e um homem bom
Na sua vida as coisas foram acontecendo naturalmente, quando deu por ela as fãs não o largavam e o seu nome surgia em incertas da imprensa lusófona. O menino franzino nascido em S. Tomé e Príncipe, cabo-verdiano de coração, português e holandês por razão dessa inevitável Diáspora crioula, fez-se gente e “artista de variedades”. E, seguramente, o seu nome ficará para sempre ligado à História da Música Cabo-verdiana. Já lá vão vinte e dois anos, com altos e baixos, “aprendendo sempre com os erros e os disparates”, Jorge Neto fez mais uma passagem pelas ilhas natais dos progenitores e sua [dele mesmo] pátria amada, onde sempre regressa “porque é esta a minha casa” [Jorge Neto, dixit].
O lado acidental da sua vivência começa logo no ato de nascer. Filho de emigrantes, andarilhos deste Mundo onde é preciso labutar pela sorte de uma vida digna, Jorge tem as primeiras imagens de vida ainda em S. Tomé, logo depois Portugal e essa Lisboa de diversidades e culturas, segunda pátria de crioulos, para mais tarde dar o salto, mais a norte, para a Holanda. Refratário ao serviço militar, o crioulo de S. Tomé, “entre a guerra e a paz” ali encontrou os primeiros apelos daquela que, inexorável, havia de ser vivência mais pungente: a Música.
Por detrás da estrela, a simplicidade
Foi tempo dos Livity, a banda formada corriam os alvores da década de noventa, que correu na Diáspora, aportou ao arquipélago e o afirmou como estrela acidental da música cabo-verdiana – banda agora “ressuscitada”, consolidada a carreira a solo e a fama que sempre o persegue e, não raras vezes, se crava em si qual claustrofobia. Porque os tiques de estrela são coisa que Jorge, passado o primeiro deslumbramento, não cultiva. Na Praia, onde o fomos encontrar, o cantor hospeda-se na Residencial Benfica, uma confortável mas modesta pensão. Percebe-se ser ali que se sente bem, no meio do seu povo e longe da mundivivência chique – e tão plastificada – dos hotéis da capital cabo-verdiana.
Entre cervejas, uns uísques e uns grogues, a conversa decorre prazenteira e solta, revelando um homem que se revê nas origens, que gosta de coisas simples e se afirma cidadão de seu tempo. “Dez anos de poder já chega, agora é preciso mudar as coisas, porque a democracia é dar a voz ao povo”, diz-nos com o olhar perdido num ponto longínquo e intemporal, como que a vislumbrar tempo novo e a passar subtil recado…
Na sua vida, como se dizia, as coisas foram acontecendo. Um concurso onde se inscreve e ganha posição cimeira, um outro que reafirma a liderança e, quase sem dar por isso, Jorge Neto vê-se protagonista do estrelato onde se mantém, “com muito trabalho e sofrimento”, mas também “tantas alegrias”, há mais de vinte anos.
Aos 45, portador de tripla nacionalidade [cabo-verdiana, portuguesa e holandesa], Neto mantém-se fiel ao “Kolazouk” o estilo que vem cultivando, entre o funana e músicas desse mundo afora onde, bem cedo, se fez à estrada.
Uauuuu! – o grito de guerra que lhe deu cognome de “Leão dos Palcos”, enforma uma receita de sucesso, entre o pulsar da música e coreografias trabalhadas ao milímetro, entrincheiradas no grande dançarino que é, dando colorido e vida aos palcos já pequenos para a sua dimensão. O povo, esse, em cada gesto, em cada palavra, em cada olhar cúmplice, percebe-se amar o homem simples por detrás da estrela que imortalizou “Rosinha”.  

Tiques de estrela são coisa que Jorge não cultiva. Na Praia, o cantor hospeda-se numa confortável mas modesta pensão. Percebe-se ser ali que se sente bem, no meio do seu povo e longe da mundivivência chique da capital

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Momentos.II

A menina de Librão, envergonhada pela presença dos “ilustres visitantes”, quis fugir à objectiva. O repórter, teimoso, não aceitou a nega e insistiu. O sorriso fez-se como se esse fosse o dia mais lindo do ano e esta menina quisesse, pelo sorriso, ligar a luz de esperança que as gentes da terra fixaram na memória dos visitantes – e o quanto isso é importante para quem, contra-corrente, continua a acreditar que a mudança [essa, a definitiva] está cada vez mais ao alcance da mão.

Albertino

A voz
É, talvez, um dos últimos boémios da música cabo-verdiana, cara ao vento ameno, encontrá-lo em imprevistos lugares, cantando, é coisa comum pelas noites da Praia, momentos mágicos de deslumbramento
É uma espécie de “ácaro”: está em todo o lado e ninguém o vê. Ou melhor, Albertino é falado por muita gente, mas há muito poucos registos sobre a sua passagem no tempo e o seu percurso na música. Que, aliás, começa bem cedo por influência do pai – mas lá chegaremos.
O imprevisto é uma constante, salvo as actuações como artista residente do “5tal da Música”, poderemos encontrá-lo nos sítios mais improváveis… Guitarra na mão, dedilhando as cordas com mestria e projectando a singular voz, Albertino apresenta-se-nos na padaria de uns amigos, corria a noite solta e quente de Santiago, emprestando o canto à poesia de Eugénio Tavares, beberricando um grogue – olhar perdido na imensidão da mensagem do mestre que se apresenta envolvente e certeira, carente de um porto de abrigo, ouvido generoso que albergue a trova e a remeta à compreensão da mente.
Abílio Barbosa Évora, mais conhecido por “Bilocas” – nominho que se lhe colou ainda cedo – terá sido o grande responsável pelo despertar musical de Albertino, ainda menino. Bana, entre outros, recebeu de “Bilocas” – reconhecido boémio do seu tempo - a matéria-prima que o fez cantor de êxito por esse mundo afora. E, a Albertino, o gosto pelo canto fez-se hóspede de si mesmo, dedilhando de permeio as 12 cordas da guitarra portuguesa que fez do pai mestre exímio do instrumento.
Dá-se à música menino, cantando para os vizinhos do prédio familiar do Bairro Craveiro Lopes, tempos idos em que a caixinha que fez mudar o mundo ainda levaria muitos anos para entrar nos lares cabo-verdianos, trazendo consigo o “progresso” e o apartar das relações e afetos em vizinhança – então família, a bem dizer. Os convívios de fim-de-semana eram constantes em casa do senhor “Bilocas”. Mornas e coladeiras saiam envoltas na voz de eleição do progenitor que acedia aos apelos dos vizinhos que, já na altura, clamavam pela voz aveludada de Albertino.
“Nesses convívios, a primeira vez que cantei, acharam aquilo extraordinário”, diz-nos o artista, não sem que, tantos anos depois, continue surpreso a registar os elogios à sua pessoa, como se fora coisa inaudita e ele, Albertino, não entendesse, muito menos, aqueles que hoje dizem ser ele “o melhor cantor cabo-verdiano vivo”.
Do único disco gravado, nos EUA [“Confidencial”] – onde foi à procura de melhor vida e regressou ávido do chamamento da terra -, não guarda recordação feliz: “aquilo não correu como devia, não gostei nada do que ouvi”, diz-nos com um sorriso onde se percebe que coisas de discos, ou modernices de CD, não lhe interessam absolutamente. Pela razão simples e primeira do prazer do “contacto com o público, do toque da alma e da epiderme”, nesse enlevo e cumplicidades que o faz correr mundo pelo boca a boca de quem sente o privilégio de o ver e ouvir no “5tal da Música”, numa padaria ou no mais recôndito e imprevisto lugar das suas caminhadas pelo mundo, porta-voz e guerreiro das músicas de Cabo Verde, das suas gentes, do povo que ama – e que de tanto amar o tolhe na impossibilidade de arrumar chão noutro lugar que não sejam as ruas da Praia, que percorre pela noite, cigarro ao canto dos lábios, navegando a mente pelo próximo poema, pelo próximo acorde, pela proximidade do público que lhe dá o ar que, sôfrego, respira “à procura do sentido das coisas”.
Albertino, assim mesmo e simplesmente, transporta no peito essa paixão antiga pela terra e pelo voo livre que a música lhe traz em cada esquina do tempo.  


Guitarra na mão, dedilhando as cordas com mestria e projectando a singular voz, Albertino apresenta-se-nos na padaria de uns amigos, corria a noite solta e quente